Monday, December 21, 2009

A experiencia El Bulli

1. A Reserva

Não fosse a insistência do Pedro Vasconcelos, provavelmente nunca teríamos ido ao El Bulli. Uma das primeiras coisas que fiz quando chegámos a Barcelona foi entregar à minha secretária um recorte do Financial Times exaltando a glória de Ferran Adriá e pedir-lhe para fazer uma reserva nesse restaurante que ostentava o título duvidoso de “melhor do Mundo”. Depois de um contacto por correio electrónico, respondeu que acabara de fechar para o inverno; tínhamos de tentar outra vez em Abril, quando abria a nova temporada. Em Abril, disseram que já não havia vaga naquele ano: mais valia voltar à carga no próximo. Havia lista de espera? Informaram que não: jantavam cinquenta pessoas por noite, e tinham centenas de pedidos. Talvez, se fossemos persistentes, conseguíssemos entrar no lugar de alguma desistência. Nem para o Cônsul Geral de Portugal abriam uma excepção? Pediram muitas desculpas, reconheciam que a situação era realmente embaraçosa, mas não havia nada a fazer.

Perante tantas dificuldades, pus de lado a ideia do El Bulli. Uma ou outra vez, quando alguém falava do assunto, ainda pedia à Myriam para voltar a insistir, mas sem pôr nisso grande empenho. Todos os dias a Catalunha me oferecia mil deleites gastronómicos. Ano após ano, os jornais anunciavam uma chuva de estrelas atribuídas pelo guia Michelin a restaurantes catalães. Já me tinha deliciado no Abac, empanturrado no Celler de Can Roca e descoberto extraordinários bares de tapas em Barcelona. Não faltavam sítios onde se podia comer maravilhosamente e, francamente, estava a ficar cansado de ouvir falar no génio de Ferran Adriá, no convite que tinha recebido para se exibir na Documenta de Kassel, nos utensílios de cozinha que desenvolvera, e nas suas famosas inovações, a esferificação da azeitona, os molhos de espuma, a cozinha molecular. Que grande diferença poderia existir entre dois restaurantes com o mesmo numero de estrelas, ou mesmo entre um com duas e outro com três?

Mas o Pedro não desarmava. De modo que, ao iniciar o ultimo ano em Barcelona, resolvi fazer uma derradeira tentativa, mais por descargo de consciência do que por verdadeira convicção. Claramente, necessitava tomar o assunto em mãos. Por intermédia pessoa nunca lá chegaria. De modo que um dia de Setembro, no meio de outros afazeres, escrevi o seguinte correio electrónico para o chefe das reservas do El Bulli, que apesar de dizer que não a todos os pedidos, nunca deixava de lhes responder:

Estimado Señor D. Luís Garcia

Hace três años el dia 1 de Octubre que empecé mis funciones como Cónsul General de Portugal en Barcelona. Una de las primeras cosas que intenté cuando llegué aqui fue hacer una reserva para comer en vuestro restaurante. No lo he logrado hasta ahora a pesar de las múltiplas veces que lo he pedido. Si hoy le escribo personalmente sobre este tema es que, a la verdad, ya me estoy quedando desesperado. Mi comisión esta a punto de terminar y me veo en riesgo de haber pasado por aqui sin conocer vuestro restaurante.

Al principio se trataba solamente de una cuestión de placer y de curiosidad. Ahora se ha convertido en una cuestión de prestigio y en una medida muy concreta del éxito de mi misión en Barcelona. Es que resulta muy difícil explicar a todos los portugueses que hacen cola para comer en vuestro restaurante y que, legitimamente, piensan que su amistad con el Cónsul les va a abrir la puerta de esa Meca, que no solamente no les puedo ayudar como que yo mismo, con toda la influencia que un Cônsul debe tener, no he podido forzar las puertas de El Bulli.

Por eso me atrevo a apelar a su buena voluntad y, en nombre de la secular amistad entre nuestros pueblos, a pedirle que abra un hueco para que este humilde servidor de Portugal pueda al menor irse de Barcelona sin tener de confesar, avergonzadamente, que de El Bulli solo ha oído hablar.

Con un saludo muy cordial, etc...”

Uma semana depois recebi a seguinte resposta:

Apreciado Señor

Le comprendo y creame que nos sentimos absolutamente impotentes delante de esta situación ya que nuestra limitada capacidade por una temporada se ve superada año trás año desde el primer momento y son incontables los temas que se acumulan pendientes de solución.

Esta angustiada confissão nada augurava de bom, mas a porta entreabria-se no segundo parágrafo:

Lo tendremos en cuenta para si conseguimos encajar una ópcion para usted pero dependemos de como vayan evolucionando las confirmaciones de todas las reservas ya fijadas

Percebi que a invocação da razão de Estado tinha abalado o muro impenetrável que se interpunha entre mim e El Bulli. Talvez agora com mais uns quantos empurrões conseguisse explorar a pequena brecha aberta pela artilharia pesada do discurso diplomático. Apesar de tudo, foi grande a surpresa quando algumas semanas depois, após novas insistências, recebi finalmente a confirmação: mesa para quatro pessoas, dia 16 de Dezembro às oito horas em ponto.

De manhã, a Clara e o Pedro chegaram de Lisboa. As quatro da tarde, partimos de Barcelona, sem almoçar. Quando chegamos a Figueres, a ultima cidade antes da fronteira francesa, já caía a noite. Virámos à direita em direcção à Costa Brava. Perdemos uma hora a passear na fantasmal Cadaqués, território de Salvador Dali e Marcel Duchamp. As sete, seguimos finalmente para Roses e de lá, por uma estrada sinuosa ladeada de pinheiros até à Cala Montjoi. Na impaciência da chegada, parecia que não tinham fim as curvas e contracurvas. À nossa direita, a noite escura deixava adivinhar o Mediterrâneo. Íamos como em direcção à casa da bruxas, lá perdida nos confins, onde se confeccionavam poções mágicas à beira mar, sem saber bem o que nos esperava.

2. O banquete

Comer no El Bulli é uma experiência teatral tanto como gastronómica. O jantar é concebido como um espectáculo, em que apenas somos chamados a participar para provar o que nos põem à frente. Não há sequer menu – ao confirmar a reserva, o cliente deve apenas indicar se tem alguma restrição, devido a qualquer alergia ou outro motivo. (A nossa era extensa, pois a Manel e a Clara são duas alergias vivas: mas para tudo tinham alternativa). A única coisa que se escolhe são os vinhos, mas mesmo nesse caso é preferível entregar o assunto nas mãos do “sommelier”, como infelizmente pude comprovar.

Começámos por uma visita à cozinha, ocasião para cumprimentar e tirar uma fotografia com Ferran Adriá. É um lugar de bulício ordenado, obviamente imaculada, onde dezenas de cozinheiros e ajudantes se debruçam sobre pequenos pratos que compõem como haikus. Ao lado, a sala de jantar está decorada num género rústico, com um chão de ladrilho preto e branco, amplas janelas debruçadas sobre o mar, e confortáveis cadeirões forrados a veludo vermelho. Nada de mobiliário de design e iluminação estudada, nem brocados e espelhos dourados como em certos restaurantes de luxo em França. O cliente deve sentir-se à vontade para poder concentrar toda a atenção nos manjares.

Apenas nos deram tempo para respirar antes de se iniciar o desfile. Primeiro veio o “sommelier”, que o Pedro logo identificou como o “nariz de ouro” de 2006, depositar na mesa um pesado volume com a carta dos vinhos. Recomendou uma cava para acompanhar as entradas frias. Concerteza, venha a cava. Portugueses que somos, fomos imediatamente ver que vinhos portugueses estavam: apenas uma página com oito Douros e um único Dão. Dick Niepoort, Quinta do Crasto e um Quinta do Vale Meão 2000. Depois de folhear brevemente as páginas e páginas dedicadas à Espanha, à França, à Itália, repletas de nomes que desconhecia, resolvi, num assomo de patriotismo, pedir o Vale Meão, um vinho delicioso, com um imenso bouquet e um aroma intenso de frutos vermelhos. O sommelier, bom diplomata, não contestou a escolha mas recomendou que começássemos por um branco: “que tal um Borgonha, por exemplo este Meursault 2001, que está óptimo”. Não hesitei: a primeira experiência transcendente que tive com vinhos fora precisamente com um inolvidável Meursault com um impressionante sabor a noz servido pelo Joaquim Brandão em Bruxelas em 1996.

Entretanto, já se iniciara o serviço. Sem nos dar tempo para respirar, prato após prato aterrava na nossa mesa, precedido de uma breve explicação e de uma sumária instrução: pega por esta ponta, trinca primeiro aqui e acaba ali. Primeiro cheira este copo, depois vai este bocadinho e por fim aquele. A primeira parte consistia em aperitivos frios acompanhados com cava. Depois da redução de “mojito”, da flor de ibisco a que era necessário sorver o suco; dos amendoins reconstruídos, da inevitável azeitona esferificada que explode na boca, da lamela de “parmigiano”, do sorbet de limão para limpar a boca, para comer com as mãos, chegou uma impressionante bola oca de gelado de Gorgonzola com noz moscada, aberta com uma colherada no topo como se faz para o “oeuf a la coque”; já estávamos rendidos, mas sem imaginar o seu seguiria. Em seguida vieram as bolachinhas de sésamo; as cerejas “umboshi”; o rebuçado de chá verde; o bolo de coco espumoso; um sensacional prato de caril de lentilhas frio (seriam realmente lentilhas?) — por esta altura já tínhamos passado para o inebriante Meursault. Depois, um meloso tartar de tétano com ostras; o camarãozinho de três sabores; um fabuloso prato de pistachios com gelado de trufa; uma demonstração das possibilidades do feijão de soja, em todas as suas variantes, puro virtuosismo gastronómico; um sensacional consomé de pombo, acompanhado por uma bolacha croquante em forma de flor coberta de cacau e recheada de um levíssimo paté, aqui se bem me lembro já acompanhado pelo Vale Meão; o carpaccio de folhas de rosa; uma etérea sandwiche de algodão de açúcar com maçãs e nozes; um excepcional caldo de galinha com gengibre onde boiava uma fina fatia de abóbora a fazer as vezes de barbatana de tubarão; o pombo com molho de tangerinas; a “gelée” de lebre; e para terminar, uma sucessão de sobremesas impossível de reconstituir dado o adiantado da hora, mas onde mesmo assim destaco a bola de gelo oca com folhas de chá verde e açúcar caramelizado e a impressionante caixa de chocolates que termina o jantar numa nota de humor sardónico.

Ao todo foram 39 pratos que nos mantiveram alertas e ocupados das oito da noite às duas da manhã. Sem pão, sem queijo, sem carne ou peixe que se vissem. Aliás, sem transição clara entre salgados e doces, sem uma noção de Ocidente ou Oriente e com um uso muito comedido da faca e do garfo: uma pura sucessão de surpresas. Muito acima, muito à frente, mas também muito ao lado do usual. Cada prato com uma esmerada apresentação, uma perfeita consistência, um sábio equilíbrio de sabores e de texturas. No final, já exausto e aturdido, ainda consegui porém a lucidez de concordar com o sommelier que o Quinta de Vale Meão tinha sido um erro. Demasiado corpo, demasiado álcool. Pode não ser patriótico e é talvez pretensioso, mas realmente estas artes pediam um grande Borgonha.

3. O Day After

Chegámos a Barcelona às quatro da manhã, conduzidos pela Manel, que se abstivera de beber, ainda a tempo de chamar um táxi para daí a duas horas levar a Clara e o Pedro ao aeroporto. No dia seguinte era dia de trabalho: eu próprio tinha uma reunião de manhã. Com quatro horas de sono acordei apenas ligeiramente tonto. Nem sombra de ressaca ou indigestão. Resolvi escrever este texto, para nunca mais me esquecer. Dos 39 pratos, nem todos ficam na memória; para reconstruir o menu, tive de recorrer a documentação. O que fica é uma sensação global de deslumbramento e euforia. Desde que fomos ao El Bulli, continuo a ter fome mas já não tenho vontade de comer. A Manel já não quer cozinhar. Dizer que o El Bulli é um restaurante de três estrelas no guia Michelin não lhe faz justiça. Merecia dez. O melhor restaurante do mundo? Não há razão para duvidar. Aquela noite lembrou uma coisa que é fácil esquecer: a grande distância que existe entre o extraordinário e o simplesmente muito bom. Já pedimos nova reserva para a temporada de verão.

Wednesday, December 9, 2009


Two major events occurred in the history of Spain in 1492: the discovery of America and the conquest of Granada. At the time, the fall of the last moorish kingdom in the Iberian peninsula was by far the most important one. Granada was the capital of a sophisticated, tolerant, languid and rich court. When the Alhambra finally fell, after a twenty year war, the Catholic Kings were in a hurry to make their imprint on the city, turning it quickly into a Christian outpost. A visit to Granada makes clear the incredible efforts made by Spain, then and in the following centuries, to bestow on the city a grandiose architectural patrimony. But no church, and no palace, not even the great Renaissance residence built by Charles V in the Alhambra, can rival in charm and delicacy the Nazari dynasty's palaces.